quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Carisma e Espiritualidade na vida do Dirigente da SSVP



Carisma e Espiritualidade na vida do Dirigente da SSVP

Quando esteve no Brasil, em maio de 2001, Pe. Robert Maloney, grande animador da FV, disse: “Vocês sonham, irmãos e irmãs? Todos sonhamos. O grande desafio é fazer os sonhos tornarem-se realidade. Permitam-me partilhar com vocês meus sonhos para a FV no início do terceiro milênio”: Entre seus sonhos, disse: “Que possamos converter-nos em uma Família que reza com devoção e de uma maneira bela . Sabemos rezar? Somos mais conhecidos pelas obras.  Precisamos desenvolver entre nós o espírito de oração, que seja atraente, belo, fervoroso, comprometido, autenticamente vicentino”.

            Quero aqui convidá-los a cultivar e concretizar esse sonho, mas de olhos abertos e comprometidamente. Desenvolver vicentinamente o espírito de oração (“Dai-me um homem de oração e ele será capaz de tudo”,) é desenvolver uma sólida e profunda vivência do carisma e  da espiritualidade vicentina.
           
            1. Olhando nossa realidade

            a)  Vivemos um momento de globalização. Dentro da lógica do sistema neoliberal, dá-se uma crescente inserção do Brasil na economia globalizada, com inúmeras consequências positivas e negativas. A globalização favoreceu o desenvolvimento tecnológico, a comunicação, a eliminação de distâncias, a eficácia e aumento da produção, etc... No entanto, regida pelas duras leis do mercado e da busca de lucro, prega a instalação da competitividade, eficiência e eficácia como critérios únicos da vida social, política, econômica e cultural da sociedade e atribui à economia um valor absoluto. O efeito mais nefasto deste sistema é que privatiza a riqueza e globaliza a pobreza. Cresce assustadoramente a distância entre ricos e pobres; no Brasil, são mais de 40 milhões de pessoas que vivem em estado de pobreza. As formas de pobreza vão se multiplicando a olhos vistos.

            O absolutismo do econômico leva muitas pessoas a orientar, suas vidas sem nenhuma referência ética de respeito à vida e lealdade no agir. A busca do enriquecimento e, por outro lado, da sobrevivência, a qualquer preço, vão sofisticando e multiplicando as formas de corrupção, de violência, de satisfação dos próprios interesses, de depredação da natureza. Debilita-se a dimensão ética da vida, perde-se a esperança, e instaura-se um regime de total desrespeito à dignidade humana. Emerge uma busca da satisfação pessoal imediata, de realização pessoal na satisfação da própria vontade, gostos e idéias (cosumismo, hedonismo, individualismo

            b) Emergência de uma religiosidade na busca de sentido. A complexidade da realidade atual e a influência da cultura pós-moderna (de emergência da subjetividade, de busca do imediato, de cansaço das utopias, de certo relativismo dos valores, de consumismo, individualismo, de intimismo, etc.) têm levado a uma prática ambígua, em relação à religião. De lado, nega-se toda religião, cai-se no materialismo (Deus é um descartável) e na indiferença religiosa. Por outro lado, há uma irrupção do sagrado, do religioso: crescimento de novos grupos religiosos (seitas), de religiões esotéricas (grande influência da cultura oriental). Diante a realidade de pós-modernidade, muitas pessoas, na busca de sentido para suas vidas, encontram na religiosidade a saída. No entanto, muitas vezes, trata-se de uma religiosidade a gosto do freguês, que satisfaça gostos e vontades pessoais, individualistas e sem grandes compromissos.
            No interior da Igreja Católica, essa sensibilidade religiosa pós-moderna provoca incfluências. De lado a Igreja precisa captar a sensibilidade atual e anunciar adequada e fielmente o Evangelho. Por outro lado, há riscos de um catolicismo vazio de evangelho: desenvolvimento de práticas muito intimistas, sem compromisso com os pobres, busca de auto-satisfação religiosa, individualismo – grande perigo: viver um cristianismo sem Cristo, sem a densidade profética do evangelho.

2.      Olhando o Carisma e a Espiritualidade Vicentina

Carisma não é a mera realização de um determinado tipo de obras, não é a pura repetição das palavras, idéias e atos de um Fundador ou Fundadora de uma Congregação ou Associação, não é também a simples manutenção de costumes e práticas específicas de um grupo. O Carisma é um dom que Deus, pelo Espírito, concede a alguém para seguir a Cristo, respondendo a uma necessidade específica na construção da Igreja, Corpo Místico de Cristo. O Carisma é uma resposta do Espírito a uma necessidade específica do povo de Deus em processo de salvação. O Carisma tem algo eminentemente pessoal e comunitário; ele nasce no interior da pessoa, suscitado pelo Espírito no diálogo da pessoa com Deus, com os outros e com o mundo; este dom se destina aos outros, ao mundo, à Igreja, enquanto tende à edificação da Igreja e a ser partilhado como caminho de santidade no serviço. O Carisma é, pois, uma maneira peculiar de seguimento a Cristo e se irradia e se perpetua  na medida em que participa da luz e da força do Evangelho e responde a uma necessidade humana. O carisma desencadeia uma espiritualidade específica: um modo próprio de seguir Jesus (atitudes) e práticas espirituais coerentes com o carisma (exercícios de piedade).

* A Experiência de São Vicente: dois fatos marcantes

            Dois acontecimentos marcaram profundamente a vida de São Vicente e foram iluminadores para descobrir seu jeito próprio de seguir Jesus e viver o Evangelho:
            - ­A experiência missionária em Folleville (1617) Pe Vicente vivia com a família Gondi, sendo capelão particular e professor dos filhos dos Gondi. Certo dia, foi chamado para atender em confissão um ancião muito doente. Este senhor que se passava por pessoa de bem confessou pecados que até então não tinha tido ousado confessar. Se este que era tido como pessoa de bem estava assim, o que dizer da grande maioria do povo da região?
            No dia seguinte, dia 25 de janeiro de 1Pe. Vicente convida o povo e faz um sermão, com forte apelo à conversão e à confissão. Tão grande foi a procura que foi necessária a vinda dos padres jesuítas de Amiens para ajudar.
            Neste acontecimento, Pe. Vicente descobre o abandono pastoral dos camponeses e sua ignorância religiosa. Nisto o enfraquecimento da fé. Descobre a importância da pregação e da ação missionária junto aos camponeses abandonados. Descobre aí que a Providência Divina o chama a realizar e organizar as missões, pregando o evangelho e ensinando as verdades essenciais da fé.

            - A experiência caritativa em Chatillon (1617): Diante dos apelos pastorais do povo, deixa a casa dos Gondi e vai para a Paróquia de Chatillon, que, embora tivesse 6 padres, estava praticamente abandonada. Procura afervorar o povo e dinamizar a paróquia. Certo dia, estava se paramentando para a missa, vieram avisar-lhe que havia uma família na periferia da cidade em total estado de miséria, passando fome e toda sorte de necessidades. Durante a missa, Pe. Vicente faz um apelo para o povo socorrer s família necessitada. Quando foi visitar a família, Pe. Vicente viu uma verdadeira romaria de gente indo visitar e levar donativos aos necessitados. Aí percebeu a necessidade de organizar a Caridade, afinal muita doação hoje e nada amanhã!
            Pe. Vicente aí descobriu a necessidade de atender as necessidades materiais dos pobres – a caridade precisa ser organizada. A partir daí, organiza as Confrarias da Caridade e promove inúmeras atividades caritativas.  Entende que a pregação do Evangelho deve vir acompanhada da promoção da caridade.

            Estes dois acontecimentos são fundamentais para Pe. Vicente compreender o carisma vicentino:
-         Pregar o Evangelho é um ofício importante, é continuar a fazer na terra o que fez Jesus Cristo;
-         A pregação deve vir acompanhada da caridade organizada para com os necessitados;
-         É urgente levar o pão da palavra e o pão material aos pobres, pois foi isso que fez Jesus, que está presente na pessoa dos pobres.

O amor missionário conjuga o amor a Deus e ao próximo, transforma o amor afetivo a Deus em efetivo no serviço aos pobres. Dizia São Vicente: O amor afetivo deve se tornar efetivo. “Há pessoas que por terem um exterior bem composto e interior cheio de grandes sentimentos de Deus, detêm-se nisto e quando vem a hora de agir, esquecem-se de tudo. Eles se vangloriam de sua imaginação exaltada, contentam-se com os suaves colóquios que têm com Deus na oração, falam mesmo disso como anjos, mas ao sair daí, quando é hora de trabalhar para Deus, de sofrer, de se mortificar, de instruir os pobres, de ir procurar a ovelha desgarrada, de gostar que lhes falte qualquer coisa, de aceitar as doenças,ou qualquer outra desgraça, aí, falta-lhes coragem. Não nos enganemos: ´totum opus nostrum in operatione consistit´ (toda a nossa missão consiste em agir)”.
           
* O Núcleo do Carisma e  Espiritualidade Missionária Vicentina

“Com Cristo nos Pobres”. Pobre que não queria ser pobre, São Vicente levou um bom tempo de sua vida buscando uma boa posição social. Preocupado mais só com interesses sociais e financeiros, conheceu  fracassos e decepções. Mas, na medida em que se colocou em contato com os pobres, sua vida se transformou. Os pobres foram o caminho que o levou ao encontro consigo e com Deus. Descobriu a verdadeira felicidade de seguir a Cristo que se faz presente nos rostos sofridos dos pobres. Percebeu que “não podemos garantir melhor a nossa felicidade do que vivendo e morrendo no serviço aos pobres, colocando-nos nos  braços da Divina Providência e numa total  renúncia de nós mesmos, para seguir a Jesus Cristo” São Vicente encontrou a alegria e a razão de viver em Cristo, o Verbo Encarnado, expressão máxima do amor misericordioso de Deus Pai, que enviou seu Filho para evangelizar os pobres.
Descobriu que servir o pobre é servir o próprio Cristo, é  continuar fazendo o que próprio Cristo fez.            Ao contrário dos movimentos espirituais dominantes em sua época, que destacava  o Cristo Verbo Encarnado Adorador do Pai, ele experimenta Cristo como Deus presente no mundo para compartilhar a sorte dos humildes e anunciar-lhes o Reino. Sem cair em teorias abstratas e frias, sem se deixar levar pelo intimismo ou pela fuga da realidade, Vicente de Paulo aprofundou sua fé de forma encarnada e compromissada. Viu o serviço ao pobre como a missão do Cristo Verbo Encarnado, viu no apelo do pobre o apelo de Cristo, viu no rosto do pobre o rosto de Cristo, viu a conversão da Igreja no serviço ao pobre. À luz do mistério da encarnação, colocou a caridade no centro de sua vida de seguimento a Cristo e assim dizia: A caridade está acima de todas as regras e é preciso, pois, que todas as coisas a ela se relacionem. É uma grande dama, é preciso fazer o que ela ordena. Empreguemo-nos, pois, com um novo amor a servir os pobres e também procurar os mais pobres e abandonados; reconheçamos diante de Deus eles são nossos senhores e nossos patrões”(XI, 393).

            Este é o núcleo do carisma vicentina. Daí  deriva uma espiritualidade missionária, um programa de ação apostólica, uma nova metodologia de trabalho, especificamente vicentinos. Este é o Dom que o Espírito, através de Vicente de Paulo, concedeu à Igreja. Esta é a fonte de inspiração onde devemos beber, para assumir os desafios atuais e desenvolver nossa ação missionária de serviço aos pobres.

            A força e a riqueza do carisma vicentino apresentam características bem definidas para nossa vida e trabalho. Entre tantas, lembremos algumas mais relevantes para nós hoje:

            a) Os pobres como lugar de revelação de Deus e de Jesus Cristo - Todos sabemos o quanto os pobres foram uma força transformadora na vida de São Vicente de Paulo. Na medida em que ele foi aos pobres, sua vida se transformou. Os pobres são um caminho de conversão a Jesus e seu Evangelho. Ir aos pobres é uma exigência da participação que queremos ter na Encarnação do Verbo. Se não formos a eles, é como se Deus não pudesse ter compaixão dos pobres. A exemplo de Jesus, o missionário do Pai junto aos pobres, é preciso ir ao encontro dos pequenos e sofredores, sobretudo dos mais necessitados, para conhecê-los, para deixar-nos interpelar pela sua realidade concreta e para por-nos a serviço deles de modo efetivo. Dizia São Vicente: “Se perguntarmos a Nosso Senhor: O que veio fazer na terra? ‘Assistir os pobres!’ Mais alguma coisa?  ‘Assistir os pobres!’... Nada para ele era mais importante que trabalhar para os pobres. Quando ia a outros, ia de passagem”.  A exemplo de Jesus, esse encontro com o pobre deve levar-nos a uma atitude de misericórdia, de solidariedade. Dizia São Vicente:  “Quando vamos ver os pobres, devemos entrar nos seus sentimentos para sofrer com eles e adotar as disposições daquele grande apóstolo que disse: ‘Tornei-me tudo para todos’(1Cor 9,22), a fim de que não se aplique a nós a queixa feito por Nosso Senhor, pelo profeta: ‘Esperei que alguém se compadecesse com os meus sofrimentos e não encontrei ninguém (Sl 68, 21). Por isso, devemos procurar enternecer nossos corações e torná-los sensíveis aos sofrimentos e misérias dos próximo, e pedir a Deus que nos dê o verdadeiro espírito de misericórdia... Peçamos, pois, a Deus, meus irmãos, que Ele nos proporcione este espírito de compaixão e de misericórdia, nos encha dele e nos conserve nele, para que, ao ver um missionário, se possa dizer: ‘Eis um homem cheio de misericórdia”.  Nada substitui o contato com os pobres, o frequentar sua escola, pois aí encontramos a verdadeira religião, aí podemos tornar efetivo nosso amor afetivo a Deus e ao próximo.  

            b) Espiritualidade missionária de serviço aos pobres. Nosso serviço não provém de sentimento puramente filantrópico, mas nasce e se alimenta da fé. Queremos seguir a Cristo Evangelizador dos pobres, por isso precisamos ter os mesmos sentimentos de Cristo. É preciso revestir-se de Cristo e imitar a Cristo!  E o espírito de Cristo é um espírito de caridade e de estima ao Pai. Na linha de Lucas e Paulo, ele é o Divino Pobre, que se despoja e assume a pobreza para dar-se totalmente à salvação dos pobres, com simplicidade, zelo, mansidão e humildade. Assim, nossa tarefa consiste em doar-nos a Cristo, para que Ele, através de nós, continue essa mesma missão. Este espírito deve impregnar nossas obras, nossa vida, nossa oração e todas as nossas práticas espirituais. Consequentemente, somos desafiados a desenvolver uma intensa vida espiritual, de profunda unidade entre fé e vida, de profundo amor à Igreja, de compromisso efetivo com o pobre, de disponibilidade para a missão, de humilde despojamento e de simplicidade de vida.
Dizia São Vicente: “Vivemos em Jesus Cristo, pela morte de Jesus Cristo. Devemos morrer em Jesus Cristo, pela vida de Jesus Cristo. Nossa vida deve estar escondida em Jesus Cristo e cheia de Jesus Cristo”. E não basta amar a Cristo só com bons sentimentos, é preciso revestir-se de seus sentimentos e atitudes e viver concretamente seus ensinamentos. “Amemos a Deus, meus irmãos, com a força de nossos braços e com o suor de nosso rosto”. O amor afetivo deve se tornar efetivo. Fé e vida, oração e ação andam juntas.
            Esta profunda convicção tornou São Vicente uma pessoa de fé e oração autêntica, comprometida, realista e atenta aos problemas concretos, sobretudo dos pobres. Leu o Evangelho à luz dos problemas de sua época, e leu os acontecimentos de seu tempo à luz do Evangelho. Seu amor a Deus, sua oração, não eram uma contemplação abstrata e espiritualista, desligada da vida, mas encarnada na realidade e no compromisso concreto.

c) Vivência da caridade organizada, criativa e integral. O carisma vicentino é essencialmente missionário, brota da ação e conduz à ação. São Vicente experimentou o Verbo Encarnado não a partir da contemplação, mas da ação dentro da realidade concreta, como resposta aos apelos de Deus encarnado na história humana. Assim, com muito realismo, nos convida a amar a Deus com a força de nossos braços e com o suor de nosso rosto. O anúncio do Evangelho deve levar à ação concreta – fé e vida, oração e ação, palavra e atos concretos, caminham sempre juntos!
            A verdadeira caridade não se contenta com palavras e boas intenções. Tem que ser eficaz, bem organizada e sempre atenta às necessidades reais. Mais ainda, deve abranger a pessoa toda. São Vicente dizia que a caridade deve ser material e espiritual; hoje podemos dizer: deve ser assistencial, promocional e profética. Na dimensão assistencial, “dar o pão aos famintos”, atender às necessidades imediatas e mais urgentes; na dimensão promocional, promover o pobre, ajudando-o a buscar caminhos para  que descubra sua dignidade, se valorize e se capacite para incluir-se na sociedade de forma ativa e positiva; na dimensão profética, denunciar as situações de injustiça e exclusão, anunciar a fraternidade e a solidariedade queridas por Deus e promover ações transformadoras que atuem sobre as causas da exclusão e promovam uma vida justa e solidária.

            d) Virtudes e práticas espirituais vicentinas - Só um coração inflamado do amor de Deus é capaz de contagiar os outros. Como meios práticos e espirituais, São Vicente apresenta aos missionários 5 virtudes especiais, missionárias, tiradas do próprio testemunho de Jesus. São virtudes ativas, que nos abrem para Deus e para o próximo. São revelação e realização da caridade, do amor salvador de Deus em Cristo, a única segurança de ter Deus como sentido e força exclusiva. São as principais armas do missionário; são um caminho de santidade, ao afastar-nos das coisas da terra e nos encher o amor de Deus.

+ Simplicidade – “Consiste em fazer todas as coisas por amor a Deus e Ter por fim único, em todas as coisas, a sua glória”. É evitar qualquer rodeio, hipocrisia, aparência, ostentação e artifício que visa desviar-nos de Deus e do amor ao próximo. No modo de ser, no modo de falar e pregar, a simplicidade nos aproxima dos pobres e nos coloca dentro do verdadeiro espírito evangélico.
            Hoje, a simplicidade é sobretudo a autenticidade no ser e agir, buscando a verdade, evitando máscaras, artifícios e ostentações que nos afastam do serviço gratuito aos pobres.

+ Humildade: É a aniquilação pessoal a fim de que apenas Deus reine no coração humano, é renúncia à honra, à glória, é evitar toda vaidade. É esvaziar-se de si mesmo, eliminando o orgulho e a falsidade
            Hoje, entendemos a humildade não como ingenuidade, deixar-se passivamente ser maltratado, mas abertura de coração a Deus, reconhecendo nele o Senhor de nossa vida e superando todo sentimento e atitude de auto-suficiência e prepotência.

+ Mansidão:  Controlar todo sentimento de cólera, ter grande afabilidade, cordialidade e serenidade no tratamento com os outros, sobretudo com os pobres. Na missão, a mansidão é indispensável para enfrentar as dificuldades e tratar bem os pobres.
            Hoje, podemos entender a mansidão a capacidade de manter a ternura na luta, canalizar todos os sentimentos de ira e cólera no serviço e amor ao outro. É ter o coração humano, capaz de ser solidário e amável com os outros, sobretudo os sofredores.

+ Mortificação – “A simplicidade concerne a Deus. A Segunda é a humildade que se refere à nossa submissão... A terceira é a doçura para suportar nosso próximo em seus defeitos. Mas o meio de se possuir essas virtudes é a mortificação, que corta tudo quanto pode impedir-nos de adquiri-las”. É a capacidade de tomar a cruz e seguir a Cristo, é o senso de sacrifício, de privação e de renúncia por causa do Reino de Deus e do Evangelho. É a capacidade de ser generoso a ponto de aceitar o sofrimento e perseguição por Cristo.
            Hoje, a  mortificação é a capacidade de concentrar-se para optar em radicalidade por Cristo e seu Reino de Justiça. É a capacidade de determinação, resistência e de disciplina para bem seguir e servir a Cristo e à sua obra de evangelização.

+ Zelo “Um puro desejo de tornar-se agradável a Deus e útil ao próximo. Zelo para estender o império de Deus, zelo para trabalhar na salvação do próximo... Se o amor de Deus é um fogo, o zelo é a sua chama. Se Deus é sol, o zelo é o raio. Zelo é capacidade de dedicação total à causa do Evangelho de Jesus Cristo”.
            Hoje, entendemos o zelo como a capacidade de “ter garra” para anunciar o evangelho e servir os pobres. É a dedicação generosa, atuante, criativa e responsável para ir ao encontro das necessidades do próximo, ultrapassando fronteiras e levar o Evangelho. É a alegria irradiante e corajosa de servir e trabalhar firmemente pela causa do Reino.

            Junto a essas virtudes, São Vicente estimulou a práticas de exercícios de piedade. Nada de especial, propõe as práticas comuns da Igreja: oração intensa, meditação da Palavra de Deus, vivência sacramental (ênfase no compromisso batismal, no amor à Eucaristia), devoção à Maria, retiro espiritual anual... Em tudo isso, uma grande novidade: a prática destes meios espirituais devem estar vinculados, comprometidos e articulados com o serviço aos pobres, com o seguimento a Cristo evangelizador dos pobres.

            3. Pensando a animação espiritual vicentina da SSVP

Diante da realidade atual, cheia de desafios e de possibilidades, o cristão (o dirigente da SSVP), corre três grandes riscos:
            - Deixar-se sufocar pelas dificuldades, caindo no vazio espiritual, que leva a uma ação mecânica, materializada e meramente ativista;
            - Deixar-se levar pela novidade, assumindo o que está na moda, desvirtuando o carisma e espiritualidade do grupo, caindo em uma duplicidade de vida (trabalha como vicentino, reza como catecúmeno ou carismático, por exemplo);
            -  Deixar-se levar por uma atitude de resistência, de fechamento no tradicional, no desenvolvimento de uma postura moralista ultrapassada e que não renova e dá vigor à vivência do evangelho.

a) Fazer da realidade, do encontro com o pobre um momento espiritual. Aí nossa fonte, onde encontramos Cristo. Nada substitui o contato com o pobre. Convivendo com sua pessoa e sua realidade, cultivar sentimentos espirituais de fé e solidariedade, rezar com e pelos pobres, aprender com eles. De modo crítico, somos convidados a resgatar o que há de mais autêntico na nossa espiritualidade: a "unidade entre ação e contemplação", a "contemplação na ação", ou ainda, a "mística da ação ou da caridade"[1].
A experiência de Vicente foi perceber Deus nos acontecimentos, nas pessoas e na história. Sua vida e seus ensinamentos testemunham uma integração típica entre fé e vida, ação e contemplação. Enquanto, para Francisco de Sales, a oração é o exercício da caridade e ela termina na contemplação, para o Santo da Caridade “o principal da oração consiste em se decidir bem”, isto é, o encontro com Deus sempre se converte em compromisso, ou como ele  gostava de dizer "resoluções"  com a evangelização e o serviço do pobre.
Na espiritualidade vicentina, os acontecimentos, a vida e os pobres convertem-se em matéria de contemplação. Aliás, a própria atividade ordinária do serviço da evangelização ou da caridade torna-se contemplação: "dez vezes ao dia a irmã encontrará  Deus nos enfermos"[2]. Os dois momentos - contemplação e ação - complementam-se, integram-se. Aproximam-se tanto que dificilmente cabe uma oração desencarnada do mundo e dos pobres. Podemos dizer que a missão e a caridade brotam da contemplação do Cristo evangelizador  e servidor dos pobres e, por sua vez, elas mesmas conduzem, motivam  e transbordam na oração.

b)Para nós seguidores de São Vicente, o estudo e vivência do carisma vicentino nos iluminam, nos fortalecem e nos unem para agir. Contra qualquer tipo de tradicionalismo, de espírito da moda ou de desânimo e vazio espiritual, somos chamados a aprofundar e ler nosso carisma e nossa espiritualidade vicentina, à luz dos apelos que Deus nos apresenta no mundo de hoje. Seguramente, a compreensão atualizada e a fidelidade criativa ao carisma nos permitirão a abertura de um leque de possibilidades para uma ação dinâmica, conjunta e renovada de serviço aos pobres. É urgente investir todos os esforços na formação doutrinal, vicentina e espiritual dos confrades. Uma formação sólida e coerente com o carisma vicentino.

            c) Intensificar os momentos de espiritualidade, de modo criativo, belo e atraente. Criatividade, beleza, mas no compromisso com a realidade dos pobres e com a caridade. São Vicente reza a partir da realidade. A sua oração brota da vida. Nas suas conferências e correspondências, freqüentemente, um texto da Sagrada Escritura, um acontecimento infeliz de última hora, como o naufrágio de seus missionários, a beleza de uma virtude, como da Filha da Caridade que trabalhava no Palácio da rainha da Polônia, o sucesso do irmão que levou auxílio às regiões devastadas pela guerra, suscitam-lhe uma oração inesperada e inspirada pelo Espírito de amor que se aninha no seu coração, às vezes, até às lágrimas. Percebemos, assim, que a sua oração está integrada à vida e à vida apostólica e missionária. Uma oração profunda e intensa que se torna uma verdadeira oração contemplativa e que motiva e mobiliza ainda mais a ação caritativa e missionária. Aliás, Bergson afirma, muitos anos depois: “a mística cristã não termina no êxtase. Termina na caridade”.

            d) Buscar assessoria (ajuda) para a animação espiritual. São Vicente soube buscar no seu tempo o que de melhor existia para afervorar os seus padres e irmãs no serviço aos pobres. Profundamente eclesial, ele recorre a autores espirituais e a práticas religiosas que podem ajudar no crescimento de seus seguidores. Hoje, também nós precisamos estar abertos ao que acontece na Igreja e buscar ajuda do que de melhor existe para o serviço dos pobres. Precisamos aprender a rezar e agir com outros grupos e pessoas comprometidos com os pobres (Pastoral do Negro, PO, CIMI, Pastoral da Criança, Pastoral de Rua, etc.).
            De modo mais intenso, entrosar-se com os grupos de inspiração vicentina. Como FV, precisamos nos ajudar a rezar vicentinamente. Nisto, já está sendo feito uma caminhada muito promissora...
            Valorizar a figura do Diretor Espiritual. O papel do Assistente Espiritual precisa ser compreendido e desenvolvido, como toda a SSVP, com a preocupação de renovar-se constantemente e adaptar-se às condições mutáveis do mundo e da Igreja (cf. Regras da SSVP, n. 2, p. 31). Superando o modo tradiconal e clericalista, buscar o modo participativo e fraterno – Este modelo, mais condizente com a visão de Igreja do Vaticano II, compreende o padre Assistente Espiritual como um irmão exercendo um serviço, um ministério de animação, junto a outros irmãos. O Assistente Espiritual é, na linguagem de hoje, o “Assessor Espiritual”. Assessorar é uma palavra que vem do latim “assidere” (ad sedere) que significa sentar-se em companhia de alguém, ao lado de alguém. O Assessor ou Assistente Espiritual não dirige, não se faz de superior, é, sim, alguém que, respeitando e valorizando os outros, colabora no processo ativo e corresponsável de crescimento do grupo.
            O Assessor Espiritual na SSVP deve ser alguém que, no respeito à autonomia dos leigos vicentinos, colabora para suscitar uma participação ativa e um crescimento das pessoas na fé e na vivência espiritual vicentina. Assim, não seria alguém para apenas celebrar missa, para cumprir certas formalidades, para fazer uma curta reflexão espiritual no início da reunião, mas alguém que colabora na reflexão, na formação e na animação, que ajuda no desenvolvimento de uma consciência crítica, na revisão criativa das práticas pessoais e coletivas dos vicentinos, sempre em vista de uma maior fidelidade e coerência com os ensinamentos do Evangelho e da Igreja e com o espírito vicentino da SSVP.
Este novo tipo de Assessoria traz um novo perfil do Assistente Espiritual, com características e tarefas mais definidas. Naturalmente, isso exigirá tanto do Assessor como da SSVP atitudes de abertura e renovação para bem desenvolver este serviço dentro de uma nova modalidade. Precisa sobretudo ser alguém:
            - Comprometimento com a causa de serviço aos pobres e capacidade de animar a SSVP na sua vocação fundacional de tornar efetivo o Evangelho entre os pobres;
            - Conhecimento da vida e ensinamentos de São Vicente de Paulo e de Frederico Ozanam, da espiritualidade vicentina e das Regras da SSVP, para bem colaborar na formação e animação em seu carisma vicentino e em sua identidade específica;
            - Capacidade de ajudar os leigos na leitura dos sinais dos tempos e dos clamores dos pobres, para colaborar com a SSVP no discernimento de caminhos que levem à renovação e dinamização de seu serviço junto aos pobres.
As tarefas do Assistente Espiritual são sobretudo
            -  Colaborar no planejamento, execução e revisão dos programas de formação de sua Conferência ou de seu Conselho, dentro da dinâmica vicentina de fé-vida, oração-ação; o espaço primordial de atuação do Assistente é o espaço da formação;
            - Orientar e estimular sua Conferência ou seu Conselho na realização de projetos de serviço aos pobres;
            - Orientar e colaborar com sua Conferência ou seu Conselho no entrosamento e na sua participação com a Igreja, em suas orientações e caminhada pastoral;
            - Ajudar os membros de sua Conferência ou de seu Conselho para que tomem consciência de sua pertença à grande Família Vicentina e busquem se entrosar com os demais ramos desta Família.
Diante da importância e necessidade do trabalho de Assistência ou Assessoria Espiritual no interior da SSVP, algumas sugestões em termos de perspectivas:
- Embora complexo e difícil, creio que seria muito enriquecedor despertar toda a SSVP, sobretudo os Conselhos Metropolitanos e Centrais, para a importância e reflexão sobre a questão da assistência espiritual e pensar como desenvolver este serviço na SSVP, em seus diversos níveis, local, regional e nacional, em vista de sua maior unidade, articulando e orientando o trabalho dos atuais Assistentes e inclusive valendo-se dos MCS existentes no interior da própria Sociedade.
- Diante da grande quantidade de Conferências e Conselhos existentes e da nova configuração da Assistência Espiritual, este serviço não poderia ser também exercido por leigos preparados, irmãs e irmãos religiosos?
- Seria bastante importante e necessário pensar um plano de suporte financeiro para custear as atividades de assessoria (material, despesas com assessores, etc.)!
- Penso que, dentro do espírito de Família Vicentina, se poderia fazer uma tentativa de se conseguir uma maior colaboração das congregações e associações de inspiração vicentina (AIC, Congregação da Missão, Filhas da Caridade, Irs. de SVP de Gysegem, Religiosos de São Vicente de Paulo, Fráteres da Misericórdia, etc)!
           
            Concluindo, o movimento desencadeado por São Vicente, percorrido por Ozanam e tantos outros homens e mulheres, não é apenas um movimento apostólico de serviço e caridade, mas um movimento espiritual que na caridade no leva ao encontro com Deus. Urge recuperarmos e promover esse desenvolvimento espiritual de modo coerente, belo e atraente para as pessoas de nossos tempos!

Pe. Eli Chaves dos Santos, CM
Belo Horizonte, abril de 2002



[1] MALONEY, Robert P. Conjugar la ación y la contemplación. Em Vicentiana, 44; marzo-abril 2000, 175-192. 
  Aa.Vv. San Vicente de Paúl y la oración, XXV Semana de estudios vicencianos. Ed. CEME, Salamanca, 2000.
[2] MURGUÍA, Javier Álvarez, Oración - contemplación, Diccionario de Espiritualidad Vicenciana, Ed. CEME, Salamanca, 1995,  437-438.

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